Depois
disso, apenas voltei a minha consciência, horas mais tarde numa cama
confortável de um hospital muito bem pago. A cabeça rodava, e a ressaca
provocava dores de cabeça terríveis. Demorei até assimilar tudo e entender o
que havia se passado. As luzes mortiças daquele quarto branco; e os bips dos
aparelhos conectados ao meu corpo não ajudavam muito. Talvez o que veio feito
um sinistro balde de água fria para refrescar meus pensamentos, foi a pessoa que
me olhava amedrontada num canto escuro da enfermaria. Um tremor percorreu meu
corpo de cima abaixo. O estado daquela menina aumentou drasticamente o ritmo de
meus batimentos cardíacos. Estávamos em um hospital e era perfeitamente normal
pessoas feridas, ou dilaceradas. Mas era incrivelmente estranho, uma pessoa
naquelas circunstancias, poder andar e encarar com um ódio contido se
manifestando nas Iris verdes e intactas. Realmente os olhos eram a única parte
daquele corpo que parecia não ter sofrido nenhum dano. Os ossos da face estavam
esmagados e sangrentos, os cabelos desgrenhados e sujos, o tórax parecia
afundado, e os pés... um arrepio rápido na minha espinha... os pés estavam
virados numa posição a noventa graus do corpo abatido, deixando os ossos do
tornozelo expostos. Fechei os olhos virando a cabeça. Lagrimas umedeceram meu
rosto. Lembranças da noite passada infestavam meu cérebro confuso. A batida foi
forte sim, mas aqueles olhos eram inesquecíveis. A menina parada próxima a
janela, o arremedo de carne e ossos, era a vitima de minha embriagues. A
certeza foi crescendo dentro de minha alma. Ninguém pode resistir a um tranco
daqueles depois ser arrastada brutalmente. Comecei a tremer e a me debater. As
enfermeiras entraram correndo em meu socorro. Quando me dei conta, agulhas
atravessaram meu braço, sedando minha mente e levando o perturbador desespero
para longe de minha consciência.
Após dias
conturbados de minha internação, em que via constantemente a menina povoando
meus sonhos mais profundos. Pude voltar para meu lar. Com pesar e um terror
devasso, fiquei sabendo aquilo que já imaginava. A menina de 12 anos, cujo nome
era Karen, havia morrido a caminho do hospital. Um remorso me aniquilou naquele
momento, quase não pude controlar as lagrimas. Eu não passava de uma merda de
assassino maldito. Merecia apodrecer na cadeia. Mas um segundo e horrível
sentimento entrou em cena com um baque forte e fatal: Eu havia visto um
fantasma naquele dia no hospital! Se minha sanidade estivesse em ordem, como
acreditava que estava, os olhos verdes e cheios de raiva direcionada a seu
algoz, pertenciam a uma aparição.
Depois
daquele dia não soube mais o que é ter paz. Aonde eu ia, aonde tentava procurar
refugio para meu sofrimento, eu a via. Se fosse num churrasco com os amigos do
trabalho, estremecia ao vislumbrar num canto escuro a menina deformada que me
encarava; se estivesse transando com minha esposa, ao abrir os olhos a menina
estava deitada no teto com sangue no rosto; atrás de mim no espelho do
banheiro, sentada num banco do outro lado da rua. Não tinha pra onde correr,
dizem que é impossível se esconder de um fantasma. Geralmente nesses momentos
todos percebiam meu pavor e desespero.
As mãos tremulas e a pele lívida
realçavam as perguntas: “ que foi Vinicius? Até parece que viu um
fantasma..” E sim... eles estavam
certos. Mas o segredo não foi revelado a nenhum deles, nem mesmo a Suélen minha
querida esposa. Pois eu tinha medo que duvidassem de meu estado mental, tinha
medo de ser tachado e internado como louco, ninguém era capaz de conceber
espíritos atormentadores caminhando em nosso mundo real. Se não estivesse
acontecendo em minha vida até mesmo eu duvidaria. Procurei ajuda profissional.
Consultei-me com bons psicólogos, que alegaram um desequilíbrio normal causado
pelo choque de ter assassinado uma pessoa. Remédios, calmantes, tratamentos
prolongaram dias terríveis para mim, em que até mesmo em minhas horas noturnas
de sono eu a via com freqüência sob meu carro, me olhando sem dizer uma só
palavra, em pesadelos horríveis e tão reais.
Após o
julgamento, em que pude contemplar os mesmo olhos furiosos e verdes da mãe da
garota e sentir o peso de suas palavras “ Assassino!!! Você me levou meu bebe!!!... Era tudo o que
eu tinha, seu bastardo, filho de uma puta!!”.
Fui
absolvido, tendo apenas que pagar uma leve pena comunitária. Karen também
estava lá, acompanhou todo o julgamento, parada estática em pé no meio do
corredor. Sangue lhe descia pela face, manchando o vestidinho branco e roto. Sai
de cabeça baixa do tribunal, Quase contestando minha própria pena. Eu sabia o
que de certo merecia, mas o dinheiro e o prestigio de meu nome como renomado
advogado haviam falado mais alto. Entrei no carro sentindo uma grande tristeza
tomando conta de mim, as nuvens que cobriam o céu naquele dia, derramaram sua
chuva sobre a cidade, como se fossem as tristes lagrimas de um Deus justo, que
chora por sua filha assassinada.
Ao chegar
ao meu lar, sendo recebido com abraços efusivos e reconfortantes por Suélen; a
primeira coisa que vi, foi Karen com seus pés arroxeados e perpendiculares
saindo de trás da cortina da grande janela da sala de estar. “JUSTIÇA “, estava escrito com sangue e a letra
irregular de uma criança, sobre o branco impecável da cortina que contornava as
formas escondidas da criatura. Corri em lagrimas para o banheiro.
Tentei me
suicidar naquele dia, mas como nas outras cinco vezes frustradas, a coragem me
faltou. Eu acabei descobrindo que na realidade era um covarde que nunca foi
capaz de assumir suas próprias responsabilidades, e não tinha coragem nem para
tirar sua própria vida. Acabei desistindo de tudo que me rodeava, o trabalho
ficou de lado, a esposa que chorava pelos cantos da casa temendo pela saúde do
marido e o silencio que impregnava sua alma, também foi esquecida. A única
companhia que tinha, era a silenciosa e terrificante figura que passou a me
acompanhar aonde fosse, com seu arrastar de pés característico e seu olhar
ameaçador. Logo me vi, trancado em um dos quartos da casa, sendo tratado como
um depressivo agudo e me levantando apenas para fazer minhas necessidades
físicas. Estava destruído e acabado.
Voltando
meus pensamentos para o presente, abri vagarosamente meus olhos, e a
centímetros de meu travesseiro deitada de lados como eu, a têmpora sangrenta a
mostra, o maxilar quebrado vazando pelo orifício aberto na face, e os olhos
injetados a me encarar. Estremeci com o arrepio gelado que percorreu minha
espinha. Nunca havia tido um contato tão próximo e insano. O sangue empapava o
lençol sob seu corpinho, e um cheiro pútrido e nauseante envolvia minhas
narinas. Segundos foram perpassando sem palavras, apenas lagrimas desciam de
meus olhos inchados e vermelhos. O desespero e o medo tomaram conta de mim.
Podia ver nitidamente a marca negra dos pneus sobre o tecido de seu vestido. O
mínimo movimento do corpo daquela coisa causava insanidade. Fechei os olhos com
força e encobri meu rosto com a coberta. Ali naquele escuro abafado da minha
mente me sentia um pouco protegido. Fiquei assim um tempo incalculável, sem
pensar em nada. Apenas minha Respiração entrecortada chegando aos ouvidos.
Somente quando me senti capaz de raciocinar, fui descendo a coberta
vagarosamente e abrindo os olhos aos poucos. O cheiro chegou primeiro do que a
visão. Karen, ou seja lá o que fosse aquela criatura, permanecia do mesmo modo,
o corpo encolhido, o cabelo loiro sujo de terra e lodo e o olhar... o olhar
como se quisesse me dizer alguma coisa a muito esquecida. Respirei fundo
tomando audácia:
- o... O
que você... quer de mim?.. – minha voz soou profunda e embargada pelas
lagrimas.
Silencio.
Nenhuma voz aguda soando no aposento. Nenhuma voz fria rasgando meus tímpanos.
Apenas uma voz doce chegando ao meu cérebro, uma voz como uma sugestão rápida
soprada aos meus ouvidos. A boca da menina não se movera, mas eu havia captado
muito bem aquelas palavras sutis. “Sua vida pela minha... sua alma pela minha”
calafrios involuntários percorreram meu corpo de forma brutal e elétrica.
Demorei me a assimilar tudo. Pensamentos fugiam de meu cérebro assustado.
“Talvez devesse... Deus não!” tudo girava devagar. Cortei o fluxo, me
levantando de supetão da cama. Silencio. Fui até a mesinha de cabeceira
vasculhando a primeira gaveta. Papéis inúteis, camisinhas velhas, cabos de
aparelhos celulares, enfim o que eu procurava. Uma pistola automática nove
milímetros. Um pente com doze balas, mas apenas uma seria necessária. Sentei-me
na cama engatilhando a arma. Um terror em forma de calafrio enrodilhou meu
corpo inteiro, enquanto meu braço, oscilando, foi subindo devagar com a arma de
encontro a minha têmpora direita. O cano colado em meu crânio. Olhos
penetrantes a me encarar. Meu braço tremia incontrolavelmente. Fechei os olhos,
buscando coragem. O gatilho parecia pesar toneladas. Senti lagrimas assomando
em meus olhos. Não ia conseguir... era covarde demais para isso. Abri os olhos
novamente, chorando copiosamente. A menina assistia silenciosamente a cena,
ossos molares expostos, septo esmagado. Agora havia algo diferente de tudo que
eu já vira naquele olhar verde misterioso, parecia que um novo tipo de
sentimento havia nascido ali. Algo como a fria compaixão de uma vitima pelo seu
malfeitor.
Com um rangido estranho Karen se moveu de modo
afetado, parecendo ser difícil fazê-lo, como se minúsculas cordas controlassem
uma marionete gigante. Com asco vi aquela criatura rastejante se aproximar de
mim. O cheiro nauseabundo me impregnou, enquanto uma mão cadavérica e gélida
pousou sobre a minha, me fazendo ter sensações estranhas nunca dantes sentidas.
Sangue escorria por sua face. Seu dedo arroxeado passou sobre o meu que segurava
o gatilho. Olho no olho. “Deixa eu te ajudar meu querido...” uma sugestão
rápida, antes que o gatilho ficasse leve e meu dedo sofresse uma impulsão. Um
estampido ecoou na noite. Meu corpo ficou leve, e indiferente aos meus
movimentos caiu pesadamente sobre o colchão. Um zumbido abafava minha audição,
a cabeça lateja num pulsar intenso. O quarto girava numa espiral confusa. Tudo
ao redor foi desaparecendo, enquanto uma
bola travava a entrada de oxigênio no meus pulmões. Tudo escureceu, mas uma
coisa ainda era clara e mais nítida do que a escuridão e o medo. Com um vago
imito de consciência, presenciei o ato diabólica que se apresentava a minha
frente. Karen estava de pé, pairando sobre a escuridão, quase como se
flutuasse. Sua pele começou a sofrer diversas rachaduras, que se espalharam
como num chão árido de um deserto maldito. A pele seca não se demorou a
esfarelar como se fosse um enorme casulo. Os pedaços foram caindo ao chão e a
borboleta que se revelou era algo abstrato e inconcebível, como a escuridão que
nos rodeava. Os olhos verdes se transformaram em dois globos escarlates e
terríveis, a pele arroxeada característica dos mortos, deu lugar a um corpo
musculoso de um breu intenso e maligno, mais negro do que as trevas. A boquinha
delicada da menina se transformou em uma bocarra cheia de dentes pontiagudos e
amarelados. E do limiar alto do crânio da criatura, dois chifres curvados como
de bode assomaram brancos contrastando com o negrume intenso.
Meu corpo
fumigava incapaz de se movimentar. E com um terror pior do que a morte, vi aquele
demônio arrastar meu corpo e minha alma, com extrema violência, para dentro de
um túnel escuro e fétido, onde vozes lamuriantes clamavam por piedade...
Otimo.! Perfeita criatividade e inteligencia no decorrer da historia.!
ResponderExcluir