quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

JUSTIÇA SANGRENTA - by Markos Vinicius



 Olhei pro teto, e senti um certo arrepio cruzando minha espinha bem lentamente. Aqueles olhos manhosos num tom verde esmaecido pareciam poder ver todo o conteúdo da minha alma. Desviei o rosto, mas de relance podia acompanhar a menininha que se movia de modo afetado no teto branco de meu quarto abafado. Aquilo era loucura, ninguém pode engatinhar no teto sobre minha cabeça, sem sofrer os efeitos da gravidade. Mas aquela menina, com o rosto deformado e a roupa puída e suja podia. Ela caminhava pelo teto com leveza e um arrastar de pés insuportável. Apenas a face daquela criatura poderia despertar o grito mais profundo do mais corajoso entre nós. Uma lagrima começou a escorrer do canto de meus olhos. Estava frio. Frio como naquele dia. Frio como o cadáver que jazia debaixo dos pneus de meu carro importado. O sangue escorria vagarosamente pra valeta, enquanto gritavam desesperadamente o nome dela... Não! Preciso parar de pensar nisso. Fechei os olhos tentando escurecer todo o meu sofrimento e as imagens que me invadiam. Eu não queria ter feito aquilo. Eu sequer imaginava uma cena daquelas na minha vida. Quantas vezes já havia dirigido alcoolizado, e nunca sequer havia matado um cachorro que fosse. Mas porque meu Deus aquela noite tinha que ser diferente? A menina atravessando fora da faixa pra pegar a bola que quicava no meio da rua. O velocímetro marcando 80 km/h, numa ruazinha estreita da periferia da cidade. O baque forte, o guincho dos pneus no asfalto rasgando a noite. Meus reflexos lentos, me debatia entre o airbag. A cabeça confusa tentava entender a merda que havia feito. O carro só parou depois de arrastar a garota por cerca de 50 metros pela rua abaixo e bater num poste publico. Minutos foram transcorrendo, os quais quase não me recordo de nada. Só me lembro de alguém tentando me tirar das ferragens a dor lancinante nas pernas. A sirene da ambulância ressoando longe como num sonho. Sangue, muito sangue, como num rastro macabro que levava a pobrezinha sob toneladas de ferro.



Depois disso, apenas voltei a minha consciência, horas mais tarde numa cama confortável de um hospital muito bem pago. A cabeça rodava, e a ressaca provocava dores de cabeça terríveis. Demorei até assimilar tudo e entender o que havia se passado. As luzes mortiças daquele quarto branco; e os bips dos aparelhos conectados ao meu corpo não ajudavam muito. Talvez o que veio feito um sinistro balde de água fria para refrescar meus pensamentos, foi a pessoa que me olhava amedrontada num canto escuro da enfermaria. Um tremor percorreu meu corpo de cima abaixo. O estado daquela menina aumentou drasticamente o ritmo de meus batimentos cardíacos. Estávamos em um hospital e era perfeitamente normal pessoas feridas, ou dilaceradas. Mas era incrivelmente estranho, uma pessoa naquelas circunstancias, poder andar e encarar com um ódio contido se manifestando nas Iris verdes e intactas. Realmente os olhos eram a única parte daquele corpo que parecia não ter sofrido nenhum dano. Os ossos da face estavam esmagados e sangrentos, os cabelos desgrenhados e sujos, o tórax parecia afundado, e os pés... um arrepio rápido na minha espinha... os pés estavam virados numa posição a noventa graus do corpo abatido, deixando os ossos do tornozelo expostos. Fechei os olhos virando a cabeça. Lagrimas umedeceram meu rosto. Lembranças da noite passada infestavam meu cérebro confuso. A batida foi forte sim, mas aqueles olhos eram inesquecíveis. A menina parada próxima a janela, o arremedo de carne e ossos, era a vitima de minha embriagues. A certeza foi crescendo dentro de minha alma. Ninguém pode resistir a um tranco daqueles depois ser arrastada brutalmente. Comecei a tremer e a me debater. As enfermeiras entraram correndo em meu socorro. Quando me dei conta, agulhas atravessaram meu braço, sedando minha mente e levando o perturbador desespero para longe de minha consciência.



Após dias conturbados de minha internação, em que via constantemente a menina povoando meus sonhos mais profundos. Pude voltar para meu lar. Com pesar e um terror devasso, fiquei sabendo aquilo que já imaginava. A menina de 12 anos, cujo nome era Karen, havia morrido a caminho do hospital. Um remorso me aniquilou naquele momento, quase não pude controlar as lagrimas. Eu não passava de uma merda de assassino maldito. Merecia apodrecer na cadeia. Mas um segundo e horrível sentimento entrou em cena com um baque forte e fatal: Eu havia visto um fantasma naquele dia no hospital! Se minha sanidade estivesse em ordem, como acreditava que estava, os olhos verdes e cheios de raiva direcionada a seu algoz, pertenciam a uma aparição.
Depois daquele dia não soube mais o que é ter paz. Aonde eu ia, aonde tentava procurar refugio para meu sofrimento, eu a via. Se fosse num churrasco com os amigos do trabalho, estremecia ao vislumbrar num canto escuro a menina deformada que me encarava; se estivesse transando com minha esposa, ao abrir os olhos a menina estava deitada no teto com sangue no rosto; atrás de mim no espelho do banheiro, sentada num banco do outro lado da rua. Não tinha pra onde correr, dizem que é impossível se esconder de um fantasma. Geralmente nesses momentos todos percebiam meu pavor e desespero. 

As mãos tremulas e a pele lívida realçavam as perguntas: “ que foi Vinicius? Até parece que viu um fantasma..”  E sim... eles estavam certos. Mas o segredo não foi revelado a nenhum deles, nem mesmo a Suélen minha querida esposa. Pois eu tinha medo que duvidassem de meu estado mental, tinha medo de ser tachado e internado como louco, ninguém era capaz de conceber espíritos atormentadores caminhando em nosso mundo real. Se não estivesse acontecendo em minha vida até mesmo eu duvidaria. Procurei ajuda profissional. Consultei-me com bons psicólogos, que alegaram um desequilíbrio normal causado pelo choque de ter assassinado uma pessoa. Remédios, calmantes, tratamentos prolongaram dias terríveis para mim, em que até mesmo em minhas horas noturnas de sono eu a via com freqüência sob meu carro, me olhando sem dizer uma só palavra, em pesadelos horríveis e tão reais.

Após o julgamento, em que pude contemplar os mesmo olhos furiosos e verdes da mãe da garota e sentir o peso de suas palavras “ Assassino!!!  Você me levou meu bebe!!!... Era tudo o que eu tinha, seu bastardo, filho de uma puta!!”.

Fui absolvido, tendo apenas que pagar uma leve pena comunitária. Karen também estava lá, acompanhou todo o julgamento, parada estática em pé no meio do corredor. Sangue lhe descia pela face, manchando o vestidinho branco e roto. Sai de cabeça baixa do tribunal, Quase contestando minha própria pena. Eu sabia o que de certo merecia, mas o dinheiro e o prestigio de meu nome como renomado advogado haviam falado mais alto. Entrei no carro sentindo uma grande tristeza tomando conta de mim, as nuvens que cobriam o céu naquele dia, derramaram sua chuva sobre a cidade, como se fossem as tristes lagrimas de um Deus justo, que chora por sua filha assassinada.

Ao chegar ao meu lar, sendo recebido com abraços efusivos e reconfortantes por Suélen; a primeira coisa que vi, foi Karen com seus pés arroxeados e perpendiculares saindo de trás da cortina da grande janela da sala de estar. JUSTIÇA “, estava escrito com sangue e a letra irregular de uma criança, sobre o branco impecável da cortina que contornava as formas escondidas da criatura. Corri em lagrimas para o banheiro.
Tentei me suicidar naquele dia, mas como nas outras cinco vezes frustradas, a coragem me faltou. Eu acabei descobrindo que na realidade era um covarde que nunca foi capaz de assumir suas próprias responsabilidades, e não tinha coragem nem para tirar sua própria vida. Acabei desistindo de tudo que me rodeava, o trabalho ficou de lado, a esposa que chorava pelos cantos da casa temendo pela saúde do marido e o silencio que impregnava sua alma, também foi esquecida. A única companhia que tinha, era a silenciosa e terrificante figura que passou a me acompanhar aonde fosse, com seu arrastar de pés característico e seu olhar ameaçador. Logo me vi, trancado em um dos quartos da casa, sendo tratado como um depressivo agudo e me levantando apenas para fazer minhas necessidades físicas. Estava destruído e acabado.

Voltando meus pensamentos para o presente, abri vagarosamente meus olhos, e a centímetros de meu travesseiro deitada de lados como eu, a têmpora sangrenta a mostra, o maxilar quebrado vazando pelo orifício aberto na face, e os olhos injetados a me encarar. Estremeci com o arrepio gelado que percorreu minha espinha. Nunca havia tido um contato tão próximo e insano. O sangue empapava o lençol sob seu corpinho, e um cheiro pútrido e nauseante envolvia minhas narinas. Segundos foram perpassando sem palavras, apenas lagrimas desciam de meus olhos inchados e vermelhos. O desespero e o medo tomaram conta de mim. Podia ver nitidamente a marca negra dos pneus sobre o tecido de seu vestido. O mínimo movimento do corpo daquela coisa causava insanidade. Fechei os olhos com força e encobri meu rosto com a coberta. Ali naquele escuro abafado da minha mente me sentia um pouco protegido. Fiquei assim um tempo incalculável, sem pensar em nada. Apenas minha Respiração entrecortada chegando aos ouvidos. Somente quando me senti capaz de raciocinar, fui descendo a coberta vagarosamente e abrindo os olhos aos poucos. O cheiro chegou primeiro do que a visão. Karen, ou seja lá o que fosse aquela criatura, permanecia do mesmo modo, o corpo encolhido, o cabelo loiro sujo de terra e lodo e o olhar... o olhar como se quisesse me dizer alguma coisa a muito esquecida. Respirei fundo tomando audácia:

- o... O que você... quer de mim?.. – minha voz soou profunda e embargada pelas lagrimas.
Silencio. Nenhuma voz aguda soando no aposento. Nenhuma voz fria rasgando meus tímpanos. Apenas uma voz doce chegando ao meu cérebro, uma voz como uma sugestão rápida soprada aos meus ouvidos. A boca da menina não se movera, mas eu havia captado muito bem aquelas palavras sutis. “Sua vida pela minha... sua alma pela minha” calafrios involuntários percorreram meu corpo de forma brutal e elétrica. Demorei me a assimilar tudo. Pensamentos fugiam de meu cérebro assustado. “Talvez devesse... Deus não!” tudo girava devagar. Cortei o fluxo, me levantando de supetão da cama. Silencio. Fui até a mesinha de cabeceira vasculhando a primeira gaveta. Papéis inúteis, camisinhas velhas, cabos de aparelhos celulares, enfim o que eu procurava. Uma pistola automática nove milímetros. Um pente com doze balas, mas apenas uma seria necessária. Sentei-me na cama engatilhando a arma. Um terror em forma de calafrio enrodilhou meu corpo inteiro, enquanto meu braço, oscilando, foi subindo devagar com a arma de encontro a minha têmpora direita. O cano colado em meu crânio. Olhos penetrantes a me encarar. Meu braço tremia incontrolavelmente. Fechei os olhos, buscando coragem. O gatilho parecia pesar toneladas. Senti lagrimas assomando em meus olhos. Não ia conseguir... era covarde demais para isso. Abri os olhos novamente, chorando copiosamente. A menina assistia silenciosamente a cena, ossos molares expostos, septo esmagado. Agora havia algo diferente de tudo que eu já vira naquele olhar verde misterioso, parecia que um novo tipo de sentimento havia nascido ali. Algo como a fria compaixão de uma vitima pelo seu malfeitor.

 Com um rangido estranho Karen se moveu de modo afetado, parecendo ser difícil fazê-lo, como se minúsculas cordas controlassem uma marionete gigante. Com asco vi aquela criatura rastejante se aproximar de mim. O cheiro nauseabundo me impregnou, enquanto uma mão cadavérica e gélida pousou sobre a minha, me fazendo ter sensações estranhas nunca dantes sentidas. Sangue escorria por sua face. Seu dedo arroxeado passou sobre o meu que segurava o gatilho. Olho no olho. “Deixa eu te ajudar meu querido...” uma sugestão rápida, antes que o gatilho ficasse leve e meu dedo sofresse uma impulsão. Um estampido ecoou na noite. Meu corpo ficou leve, e indiferente aos meus movimentos caiu pesadamente sobre o colchão. Um zumbido abafava minha audição, a cabeça lateja num pulsar intenso. O quarto girava numa espiral confusa. Tudo ao redor foi desaparecendo, enquanto  uma bola travava a entrada de oxigênio no meus pulmões. Tudo escureceu, mas uma coisa ainda era clara e mais nítida do que a escuridão e o medo. Com um vago imito de consciência, presenciei o ato diabólica que se apresentava a minha frente. Karen estava de pé, pairando sobre a escuridão, quase como se flutuasse. Sua pele começou a sofrer diversas rachaduras, que se espalharam como num chão árido de um deserto maldito. A pele seca não se demorou a esfarelar como se fosse um enorme casulo. Os pedaços foram caindo ao chão e a borboleta que se revelou era algo abstrato e inconcebível, como a escuridão que nos rodeava. Os olhos verdes se transformaram em dois globos escarlates e terríveis, a pele arroxeada característica dos mortos, deu lugar a um corpo musculoso de um breu intenso e maligno, mais negro do que as trevas. A boquinha delicada da menina se transformou em uma bocarra cheia de dentes pontiagudos e amarelados. E do limiar alto do crânio da criatura, dois chifres curvados como de bode assomaram brancos contrastando com o negrume intenso.

Meu corpo fumigava incapaz de se movimentar. E com um terror pior do que a morte, vi aquele demônio arrastar meu corpo e minha alma, com extrema violência, para dentro de um túnel escuro e fétido, onde vozes lamuriantes clamavam por piedade...

Um comentário:

  1. Otimo.! Perfeita criatividade e inteligencia no decorrer da historia.!

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