Escrito por James Nungo & Bruno Costa
Aquilo já não era Vânia,
senti e vi que algo tinha possuído o corpo dela como ela dissera.
A escuridão me restringia de ver completamente a sua face mulata, que agora já
não respondia pelo mesmo nome.
- QUAL É O TEU INTENTO? -
ela disse com uma voz grotesca, uma voz dos infernos, ainda pairando na
escuridão.
Eu não sabia o que dizer,
nunca tinha feito algo parecido, o meu corpo herdava arrepios contínuos, a
primeira palavra sufocou minha garganta.
Olhei para o meu braço
chocolate e percebi que estava tremendo muito. Segurei a urina na bexiga, para
não escorrer por entre as pernas.
Mas eu tinha que dizer
algo! Seria um grande poeta! Juntei e colei os pedaços da minha coragem.
- Eu... - senti algo ruim
se contorcendo no meu ser.
- Eu quero ser um grande
poeta em todo mundo, quero que os meus versos tragam inspiração para todos que
ouvirem. - disse com a voz trémula, porém o importante é como eu disse.
- SOU ZAMBOIO, FAÇO
QUALQUER COISA QUE QUALQUER UM QUER, OS MEUS ACORDOS NÃO TÊM VOLTA, HA, HA,
HA...
As suas falas eram descontroladas.
- O TEU DESEJO VAI SE CONCRETIZAR LOGO QUE TU SAIR DAQUI.
- E o que tenho que
fazer?
Os olhos da entidade mudaram de cor. E escritas apareceram no meu peito, me
queimando por escassos segundos.
- TU TENS QUE ASSINAR
TODAS AS SUAS POESIAS COM AS PALAVRAS QUE ESTÃO CRAVADAS NO TEU PEITO - Zamboio
disse.
Aquilo estava acontecendo
ou era a minha imaginação? Lembrei dos velhos tempos, quando eu era professor
de filosofia, nunca acreditaria em um demônio, mesmo estando perante minha
visão. Se alguém apenas me contasse, teria crise de risos.
- Obrigado... Zamboio.
- AINDA NÃO TERMINEI,
PORTANTO NÃO AGRADEÇA.
- O que falta?
- TU SABE QUE NEM TODOS
OS ACORDOS SÃO FÁCEIS DE CUMPRIR, HA, HA, HA. EU SOU MUITO GENEROSO, POR ESSA
RAZÃO, SOU MUITO ADORADO POR TODO O MUNDO... QUERO UMA ALMA EM TROCA!
- Uma o quê?
- NÃO ME FAÇA REPETIR!!!
- a criatura gritou, ainda pairando no meio da grande torre. A escuridão
intensa já se fragmentava, como se fosse um sinal do fim do nosso acordo.
- Tá bom - disse, mas não
estava nada bom. Porém fiquei calmo quando a imagem de Joaquim voltou na minha
mente. Era ele que eu sacrificaria, seria parte do pacto.
Minhas pálpebras cobriram meus olhos castanhos por um segundo, quando a Vânia
caiu nas cinzas, dentro da cova e sem sentidos.
Arrastei ela para fora.
- Vânia, Vânia - sacudi
ela pelos ombros.
- Oi, senhor poeta - ela
disse com a voz fraca, como se acordasse de um sono.
Em seguida apagou, no
entanto o seu coração pulsava, ela estava viva, isso me acalmou.
Carreguei-a pondo nas minhas costas como se estivesse carregando uma criança.Levei-a até em casa, já eram 5:07 da manhã. No meio do caminho planejava
argumentos que usaria caso encontrasse vó Joana acordada.Tive muita sorte, pois ela não estava em casa quando cheguei. Imaginei ela indo
na casa do meu irmão, Osvaldo.
Coloquei Vânia na cama do meu quarto. Pus água para esquentar. Levei um pano e
uma bacia. Pus a água da chaleira para bacia e comecei a molhar a testa dela.Uma pergunta invadia o meu cérebro, "será que deu tudo certo?"
Saí do quarto. Ainda curioso, resolvi telefonar para saber da vó Joana.
Peguei o telefone que se encontrava na mesa da sala e liguei no número do
Osvaldo.
- Alô?
- Oi, quem fala?
- Sou eu irmão, liguei para saber se avó Joana está aí. Quando cheguei, não a
encontrei. Ela está aí? - eu disse colocando o telefone entre o ombro e orelha
para poder deixar as mãos livres.
- Sim ela está aqui e vai passar uma semana aqui. Afinal ela não te disse nada
quando saiu?
- Não - disse tirando um cigarro do bolso - Mas... Tá bem! Manda um olá para
ela.
- Farei isso logo que ela voltar.
- Voltar?
- Sim. Ela saiu e foi passear um pouco, você sabe o quanto ela gosta de
passear, até exagera, às vezes. Ela diz que se senti jovem quando passeia, ha,
ha, ha...
- É verdade, ha, ha, ha. Tchau, falamos outra hora.
- Tchau.
Desliguei o telefone, pus o cigarro na boca, acendi e comecei a inalar o fumo,
estando na sala. Se avó Joana estivesse em casa, eu não faria isso, sorte minha
por não está. Fui para o quarto, verifiquei se Vânia estava com os olhos fechados ou se já
tinha se recuperado. Continuei a fumar, depois fui até a minha gaveta, levei o
cinzeiro e coloquei o cigarro que estava pela metade.
Começou a surgir a ideia de levá-la até um hospital, pois antes do ritual ela
não tinha me dito que ficaria nesse estado.Levei a cadeira que estava por trás da porta, coloquei ao lado da cama e vi os
músculos da face dela começarem a se movimentar, o meu coração perdeu o peso
que eu sentia.Peguei a mão dela.
- Vânia? Tá tudo bem? acorda, conseguimos realizar o ritual com sucesso.
Ela abriu os olhos de um modo lento e apertou minha mão.
- Estou bem. Acho que estou bem, apenas doe a cabeça - ela disse levantando a
coluna e sentando.
Ela olhou-me com um olhar demorado.
- Vou ver se tem paracetamol na gaveta.
Levantei, fui até a gaveta, vasculhei durante um minuto, pois aquilo estava
desorganizado, tendo uma mistura de cigarros, folhas cheias de versos inúteis,
que eu já não precisava mais usar, meu velho dicionário e outras coisas.
Por fim encontrei, saí do quarto fui até cozinha buscar água, voltei ao quarto
e dei-a para tomar, após isso ela me questionou.
- Como foi o pacto com Zamboio?
Sentei na cadeira ao lado da cama, introduzi minha mão no bolso e tirei mais um
cigarro. Acho que ela sentiu que eu estava a demorar para responder e isso talvez a
fazia pensar que o acordo com Zamboio não dera certo.
- Como foi o acordo com o Zamboio? - Insistiu.
Como resposta abri a minha camisa ao meio e ela assustou-se quando viu as
escritas cravadas no meu peito. Logo, expliquei tudo que aconteceu.
- E agora? - Vânia me fitou com os olhos arregalados.
- Preciso testar. Vou voltar para a Casa da Hiena, hoje mesmo. - Toquei na mão
dela. - Vem comigo?
- O que pretende?
- O Zamboio não fez questão de me explicar. Como consigo uma alma para ele?
- Ele não é fresco, como outras entidades. É só cometer assassinato e oferecer
essa ação para ele. Como uma oração de sangue.
- Entendi. Então, vem comigo?
- Vou. Mas você não me respondeu. O que pretende?
- Vou mandar o Joaquim pro inferno.
Vânia me abraçou forte. Sem nenhuma palavra, ficamos colados por alguns
minutos. Um silêncio cheio de pensamentos barulhentos. Ela ficou comigo até a
noite cair sobre Orge. Os boêmios saíram de seus buracos e já andavam pelas
ruas. Escrevi uma poesia nova na calada da noite. Os versos escorregavam na folha
como lodo e inflamavam como gasolina. Quando terminei, assinei com o meu
pseudônimo satânico marcado no peito. Eu e Vânia saímos da casa e fomos direto
para a Casa da Hiena.
No caminho, vi uma silhueta no topo da antiga torre. Talvez duas, não sei.
Poderiam ser qualquer coisa ou só minha imaginação projetando lembranças recém
cravejadas no meu cérebro. Nós entramos na espelunca, passamos entre as mesas e eu senti o peso de alguns
olhares me seguindo. Sentamos e acenei para o garçom.
- Vai querer o quê? - disse, quando encostou na mesa.
- Traz uma dose de cachaça. - Me virei para Vânia. - E você? Pode pedir!
- Me traz o mesmo do dele - ela disse ao garçom.
Logo, o sujeito se foi.
No velho palco de madeira, uma mulher volumosa cantava uma música local. Ela
tinha uma voz sexy. Comecei a curtir aquele som. Acendi um cigarro. Olhei pra
Vânia. Ela parecia uma estátua, deveria estar preocupada.
As doses chegaram, matei a bebida de primeira, me sentia ansioso. Pedi uma
garrafa inteira de veneno, antes do garçom sair. Vânia começou a passar o dedo
em volta do copo ainda cheio.
- Não quer beber? - perguntei.
- Acho melhor sairmos daqui.
Nesse instante. O Joaquim entrou com mais dois amigos dele. Os três me fitaram
e foram sentar em uma mesa afastada da nossa. Sorri para a Vânia.
- A festa começa agora.
Depois que a mulher saiu do palco, me levantei e fui até lá. Subi, dei os meus
tapinhas no microfone. Olhei em volta. Puxei minha blusa de botão para o lado.
Estourei todos os botões e minha marca ficou visível. Vi o assombro se
espalhando no semblante de todos. A atenção dos vagabundos era minha. Puxei
meus versos e comecei:
Santa foice
Que colhe as almas
Te pego na mão
E colho destruição
A dor aumenta
Os olhos se apagam
A dor aumenta
O corpo treme
A DOR AUMENTA!
A alma grita
Que alma?
Alma vagabunda
Esdruxula
Agorenta
TE MATO
Desgraçado
É seu fim
JOAQUIM.
A minha oferenda se levantou e correu até mim. Fiquei parado com um sorriso
largo no rosto. Ele vinha como um leoa faminta. Mas ali, ele era a caça. Um
petisco para dar sabor no inferno. O rosto dele se contorcia de raiva.
Raiva?
Quando subiu no palco, ele se ajoelhou e pôs a mão no peito. Abaixou a cabeça e
vi gotas pingarem no assoalho. Joaquim me encarou. As gotas eram lágrimas. Não
era raiva. Era dor.
- Que... merda... você fez? - As palavras eram cortadas pela respiração rápida.
Olhei para as pessoas. Vi seus corpos rolarem pelo chão, ouvi gritos, garrafas
se estilhaçando no chão. Choro, berros e agonia muda. Vi Vânia chorando e
puxando os cabelos. Comecei a me tremer.
O que eu fiz? O que eu fiz? O que fiz?
Tenho que desfazer isso. Fui até minha amiga. Segurei e arrastei ela para fora
daquele pandemônio. Vânia se debatia, me esmurrava e gritava.
- Está doendo! Dói! Não toca em mim!
Com esforço, puxei ela até a Torre de Orge. Quando chegamos, Vânia desabou no
chão. Olhei para aquele caixão de ferro, no topo.
- Zamboio! Filho da Puta! Aparece desgraçado!
Droga! Como vou falar com ele? Tenho que acertar esse acordo! Ele me enganou!
Escutei o rangido dos ferros. Ergui a cabeça e vi aquelas sombras de antes.
Algo pulou lá do alto. Escutei uma pancada amortecida na terra, soando atrás de
mim. Virei-me assustado.
- Avó?
- OI, NETINHO VAGUNDO! - Aqueles olhos amarelos faiscavam. Aquela voz gutural
me massacrava.
- O que... Sai do corpo da minha avó, porra!
- OUSA ME DAR ORDENS?! HÁ, HÁ, HÁ!!! SUA VELHA ESTÁ PASSEANDO NO INFERNO, SE
ELA VOLTAR, ELA FICARÁ MAIS JOVEM. MAS SE NÃO VOLTAR, FICO COM ESSE CORPO PARA
PASSEAR NA TERRA.
Quando procurei um demônio para resolver um problema, eu ganhei mais um e
encontrei outro. Aquilo fugia do meu controle. Afinal, quando eu estive no
controle? A Vânia estava no chão, olhos abertos e saliva escorrendo da boca.
Minha avó Joana se vendeu para o Zamboio. Por juventude, a alma dela se
arriscava no inferno.
O que me restou?
Versos que matam. Um pseudônimo no peito. E sofrimento.
Tentei salvar as mulheres da minha vida inútil. Mas Zamboio as levou. Peguei um
graveto do chão e escrevi minha marca aos pés da Torre de Orge:
P E S A D E L O